PLANÍCIE

Sou, na verdade, o Lobo da Estepe, como me digo tantas vezes aquele animal extraviado que não encontra abrigo nem na alegria nem alimento num mundo que lhe é estranho e incompreensível

Herman Hesse

sexta-feira, 11 de maio de 2018

Clara e o Soldado


22 de Agosto de 1943-10 DE MAIO DE 2018


A escultora Clara Menéres, de 74 anos, cuja vida e obra ficaram marcadas pela religiosidade, morreu na quinta-feira, ao princípio da noite, numa unidade hospitalar em Lisboa, disse esta sexta-feira à agência Lusa fonte da família.
O corpo da artista plástica irá às 13h00 para a capela mortuária de Nossa Senhora de Fátima, em Lisboa, onde será velado, e o funeral decorre no sábado, com missa de corpo presente às 09h30, seguindo depois para Barrosas, no distrito do Porto. A artista, de origem minhota, será sepultada no Cemitério de Santo Estêvão de Barrosas, no concelho de Lousada.
De acordo com a mesma fonte, Clara Menéres estava ainda ativa e a última peça da sua autoria foi a estátua de João Paulo II, inaugurada na altura da Páscoa, numa rotunda da Maia, no Porto.
Maria Clara Rebelo de Carvalho Menéres nasceu em Braga, a 22 agosto de 1943, estudou escultura na Escola Superior de Belas-Artes do Porto, onde foi aluna de Barata Feyo, Lagoa Henriques e Júlio Resende, tendo concluído a licenciatura em 1968.
Expôs individualmente pela primeira vez em 1967 e foi bolseira da Fundação Calouste Gulbenkian em Paris entre 1978 e 1981, doutorando-se na Universidade de Paris VII em 1983. Foi também investigadora do Center for Advanced Visual Studies do Massachusetts Institute of Technology (MIT) entre 1989 e 1991.
Iniciou a atividade pedagógica na Escola Superior de Belas Artes do Porto e, entre 1971 e 1996, foi professora da Faculdade de Belas-Artes da Universidade de Lisboa, onde exerceu o cargo de presidente do conselho diretivo de 1993 a 1996. Foi depois professora catedrática na Universidade de Évora, onde lecionou de 1996 a 2007.
Uma das suas obras mais conhecidas é “Jaz Morto e Arrefece”, uma representação escultórica realista de um soldado morto com a farda da guerra colonial, inspirada no poema “O Menino de Sua Mãe”, de Fernando Pessoa. Esta obra pode ser vista atualmente na Fundação Calouste Gulbenkian, na exposição “Pós-Pop. Fora do lugar comum”, entre outras peças da autora, que também está representada na coleção da entidade.
Em 2016, o Santuário de Fátima assinalou o encerramento das celebrações do Centenário das Aparições do Anjo da Paz com a inauguração de uma escultura em bronze — “O Anjo da Paz” — da autoria de Clara Menéres. Esta imagem do Anjo da Paz, em bronze, representa uma figura jovem, embrulhada num manto branco, com uma pomba numa mão e o ramo da oliveira na outra, numa referência ao Antigo Testamento. Também no Santuário de Fátima se encontra, desde 2000, uma imagem da jovem pastora Jacinta, da sua autoria.
Entre várias exposições, participou na Alternativa Zero, Galeria Nacional de Arte Moderna, em Belém, em 1977, na XIV Bienal de S. Paulo, no Brasil, no mesmo ano, na exposição “Anos 60, anos de rutura: uma perspetiva da arte portuguesa nos anos sessenta”, na Lisboa 94, Capital Europeia da Cultura. Individualmente, entre outras, exposições, apresentou o seu trabalho em Portugal, nomeadamente em Lisboa, Porto, e Aveiro, e nos Estados Unidos, em várias cidades, nos estados de Nova Iorque e Massachusetts. (jornal OBSERVADOR)


O Menino de Sua Mãe

No plano abandonado
Que a morna brisa aquece,
De balas trespassado
— Duas, de lado a lado —,
Jaz morto e arrefece.

Raia-lhe a farda o sangue.
De braços estendidos,
Alvo, louro, exangue,
Fita com olhar langue
E cego os céus perdidos.

Tão jovem! que jovem era!
(Agora que idade tem?)
Filho único, a mãe lhe dera
Um nome e o mantivera:
«O menino da sua mãe».

Caiu-lhe da algibeira
A cigarreira breve.
Dera-lha a mãe. Está inteira
E boa a cigarreira.
Ele é que já não serve.

De outra algibeira, alada
Ponta a roçar o solo,
A brancura embainhada
De um lenço... Deu-lho a criada
Velha que o trouxe ao colo.

Lá longe, em casa, há a prece:
«Que volte cedo, e bem!»
(Malhas que o império tece!)
Jaz morto, e apodrece,

O menino da sua mãe.

Fernando Pessoa, in 'Antologia Poética'



 “As pessoas são hipócritas. Não se importam com a estátua de uma mulher nua em mármore. Se for em terra e relva, gritam escandalizadas”, explicou-me um dia Clara Menéres (1943-2018). O comentário vinha na sequência da reacção da comunidade portuguesa em São Paulo no já distante ano de 1977, quando a escultora, incluída na representação nacional na bienal de arte que aí decorria, refez a escultura Mulher – Terra – Mãe, apresentada uns meses antes na Alternativa Zero, a importante colectiva comissariada por Ernesto de Sousa que, em Lisboa, reunira um núcleo de jovens artistas que até então tinham difícil acesso aos circuitos de apresentação e exposição artísticos.(IN PÚBLICO, LUÍSA OLIVEIRA)


https://www.publico.pt/2018/05/11/culturaipsilon/comentario/ser-mulher-em-liberdade-total-1829702